sábado, 23 de outubro de 2010

Cruz e Sousa - Poema




João da Cruz e Sousa nasceu em Desterro, atual Florianópolis, Santa Catarina, em 1861, e morreu em Sítio, Minas Gerais, em 1889. Seus pais, escravos negros, foram libertos pelo Marechal Guilherme Xavier de Sousa que tutelou o poeta até a adolescência. Recebeu apreciável instrução secundária na cidade natal, mas, com a morte do protetor, teve que deixar os estudos: milita na imprensa catarinense, escrevendo crônicas abolicionistas e percorre o país como ponto de uma companhia de teatral.Todo o período catarinense de Cruz e Sousa foi, aliás, marcado pelo combate ao preconceito racial de que fora vítima em mais de uma ocasião e que o impediu de assumir o cargo de Promotor em Laguna para o qual fora nomeado. Mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1890, colaborou na Folha Popular, aí formando com B. Lopes e Oscar Rosas o primeiro grupo simbolista brasileiro. Obtido um emprego mísero na Estrada de Ferro Central, casa-se com uma jovem negra, Gavita, cuja saúde mental logo se revelou muito frágil. O casal terá quatro filhos, dois dos quais mortos antes do poeta. Minado pela tuberculose, Cruz e Sousa retira-se, em 1897, para a pequena estação mineira de Sítio à procura de melhor clima. Aí falece aos trinta e seis anos de idade. São obras do Poeta: Broquéis (1893), Missal (1898), Faróis (1900), Últimos Sonetos (1905).*

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O Poema abaixo é dedicado a Gavita, mulher do poeta, que voltava do hospício após meses de reclusão, e faz parte da obra Faróis.



RESSUREIÇÃO




Alma! Que tu não chores e não gemas,
Teu amor voltou agora.
Ei-lo que chega das mansões extremas,
Lá onde a loucura mora!

Veio mesmo mais belo e estranho, acaso,
Desses lívidos países,
Mágica flor a rebentar de um vaso
Com prodigiosas raízes.

Veio transfigurada e mais formosa
Essa ingênua natureza,
Mais ágil, mais delgada, mais nervosa,
Das essências da Beleza.

Certo neblinamento de saudade
Mórbida envolve-a de leve...
E essa diluente espiritualidade
Certos mistérios descreve.

O meu Amor voltou de aéreas curvas,
Das paragens mais funestas...
Veio de percorrer torvas e turvas
E funambulescas festas.

As festas turvas e funambulescas
Da exótica Fantasia,
Por plagas cabalísticas, dantescas,
De estranha selvageria.

Onde carrascos de tremendo aspecto
Como astros monstros circulam
E as meigas almas de sonhar inquieto
Barbaramente estrangulam.

Ele andou pelas plagas da loucura,
O meu Amor abençoado,
Banhado na poesia da Ternura,
No meu Afeto banhado.

Andou! Mas afinal de tudo veio
Mais transfigurado e belo,
Repousar no meu seio o próprio seio
Que eu de lágrimas estréio.

De lágrimas de encanto e ardentes beijos,
Para matar, triunfante,
A sede ideal de místico desejo
De quando ele andou errante.

E lágrimas, que enfim, caem ainda
Com os mais acres dos sabores
E se transformam (maravilha infinda!)
Em maravilhas de flores!

Ah! que feliz um coração que escuta
As origens de que é feito!
E que não é nenhuma pedra bruta
Mumificada no peito!

Ah! que feliz um coração que sente
Ah! tudo vivendo intenso
No mais profundo borbulhar latente
Do seu fundo foco imenso!

Sim! eu agora posso ter deveras
Ironias sacrossantas...
Posso os braços te abrir, Luz das esferas,
Que das trevas te levantas.

Posso mesmo já rir de tudo, tudo
Que me devora e me oprime.
Voltou-me o antigo sentimento mudo
Do teu olhar que redime.

Já não te sinto morta na minh'alma
Como em câmara mortuária,
Naquela estranha e tenebrosa calma
De solidão funerária.

Já não te sinto mais embalsamada
No meu carinho profundo,
Nas mortalhas da Graça amortalhada,
Como ave voando do mundo.

Não! não te sinto mortalmente envolta
Na névoa que tudo encerra...
Doce espectro do pó, da poeira solta
Deflorada pela terra.

Não sinto mais o teu sorrir macabro
De desdenhosa caveira.
Agora o coração e os olhos abro
Para a Natureza inteira!

Negros pavores sepulcrais e frios
Além morreram com o vento...
Ah! como estou desafogado em rios
De rejuvenescimento!

Deus existe no esplendor d’algum Sonho,
Lá em alguma estrela esquiva.
Só ele escuta o soluçar medonho
E torna a Dor menos viva.

Ah! foi com Deus que tu chegaste, é certo,
Com a sua graça espontânea
Que emigraste das plagas do Deserto
Nu, sem sombra e sol, da Insânia!

No entanto como que volúpias vagas
Desses horrores amargos,
Talvez recordação daquelas plagas
Dão-te esquisitos letargos...

Porém tu, afinal, ressuscitaste
E tudo em mim ressuscita.
E o meu Amor, que repurificaste,
Canta na paz infinita!


*Fonte: História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, São Paulo: Cultrix, 1999, p.270-271.
Imagem retirada da Internet: pássaro