quarta-feira, 5 de maio de 2010

A MARCA HUMANA



A literatura, assim como outras artes, tem o poder de nos chamar à reflexão da nossa realidade, pois ela traz significações, que, a partir da realidade do autor, nos coloca nos mesmo patamar de significados. Pensando assim, destaco aqui alguns trechos do livro "O filho eterno", obra premiada do escritor Cristóvão Tezza. Quem sabe, pelo prisma do autor, possamos mergulhar nos nossos próprios dramas e na nossa incompletude.

einstein.jpg Einstein image by xandelima


"A normalidade. O que dizer aos outros, quando encontrar com eles? Sim, nasceu meu filho. Sim, está tudo bem. Quer dizer, ele é mongolóide. Não - essa palavra é pesada demais. E em 1980 ninguém sabia o que era "síndrome de Down". A maneira delicada de dizer é: Sim, um pequeno problema. Ele tem mongolismo. [...] Já viu na Enciclopédia que o nome da síndrome se deve a John Langdon Haydon Down (1828-1896), médico inglês. À maneira da melhor ciência do império britânico, descreveu pela primeira vez a síndrome frisando a semelhança da vítima com a expressão facial dos mongóis, lá nos confins da Ásia; daí "mongolóides". Que tipo de mentalidade define uma síndrome pela semelhança com os traços de uma etnia? O homem britânico como medida de todas as coisas. O Príncipe Charles, aquela figura apolínea, será o padrão de normalidade racial, e ele começa a rir no escuro, acendendo outro cigarro." (p.43)

Este é apenas um trecho do livro. Um livro que, desde o primeiro parágrafo, apresenta reflexões de um sujeito que busca incessantemente fugir das amarras impostas pela sociedade, e que, no percurso de sua vida, se descobre preso às condições de socialização em um mundo "civilizado". A impossibilidade de fuga do autor, possibilitou a criação de uma obra que tem a grandeza de trazer reflexões sobre como nos inserimos nos grupos sociais e como nos transformamos nesse mundo tão de "iguais", mas, ao mesmo tempo, tão de "diferentes" que se esforçam para serem iguais.

Mais um trecho...

"Lá vai o filho nadando, tranquilo seguindo regra. Seu filho é incapaz de perceber verdadeiramente a abstração da disputa, a sua idéia implícita - ali o pai começa a descobrir o poder do teatro no verniz civilizador. Antes, muito antes da idéia, vem o gesto; assim com a entonação da voz chega muito antes aos ouvidos (e à alma) que o sentido e a referência do signo fechado. Nesse teatro, ele é o ator sem direção, mas respeitando a regra. Terminada a corrida - em último lugar que seja -, Felipe faz a festa do vencedor, levantando os braços, feliz da vida: é o Campeão. [...] que sentido tem para ele quarto lugar? Trata-se apenas de um jogo, ou, antes ainda, trata-se da encenação de um jogo, no qual o filho reproduz o que se espera dele - nadar daqui até ali - e o mundo lhe dará a taça de campeão." (p.154)

Finalizo com mais um trecho que se seguiu à reflexão do autor de qual é o sentido do futebol para o filho e argumenta que o futebol é o único momento em que o filho pode ver o futuro, ou seja, lidar com o inesperado, pois nunca se sabe qual será o resultado. O filho que foi treinado todo o tempo para não causar estranhamento na sociedade.

[...] Ele jamais fará companhia ao meu mundo, o pai sabe, sentindo súbita extensão do abismo, o mesmo de todo dia (e, talvez, o mesmo de todos os pais e de todos os filhos, o pai contemporiza) - e, no entanto, o menino continua largando-se no pescoço dele todas as manhãs, para o mesmo abraço sem pontas.
- Hoje tem jogo filho!
O menino sorri, exultando:
- Hoje tem?!
- Tem! Atlético e Fluminense!
- Então vamos chamar o Christian!
O Christian é um vizinho atleticano - em todo jogo monta-se na casa uma arquibancada de fanáticos.
- Sim, ele também vem.
- Isso! Vamos ganhar! Quatro a zero! - e ele mostra a mão espalmada, olha para os dedos, ri e acrescenta: - Opa! Errei! Cinco a zero!
- Vai ser um jogo muito difícil - o pai pondera, torcedor pessimista. que tal dois a um?
O menino pensa. Ergue a mão novamente, agora com três dedos.
- Três a zero, só. Que tal?
- Tudo bem. Mas vai ser duro. Você está preparado?
- Estou! Eu sou forte! - Ele ergue o braço, punho fechado: - Nós vamos conseguir!
- Vamos ver se a gente ganha.
O menino faz que sim, e completa, braço erguido, risada solta:
- Eles vão ver o que é bom pra tosse!
É uma das primeiras metáforas de sua vida, copiada de seu pai, e o pai ri também. Mas para que a imagem não seja arbitrária demais, o menino dá três tossidinhas marotas." Bandeira rubro-negra devidamente desfraldada na janela, guerreiros de brincadeira, vão enfim para a frente da televisão - o jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima idéia de como isso vai acabar, e isso é muito bom. (p.221-2)

Após nos voltarmos para um pouquinho que é a grandiosidade do livro, que tal encerrarmos com uma pergunta (que não é para ser respondida, mas sim para ser novamente questionada):


O que vem a ser o tempo para todos nós...

...Se não a repetição dos dias em seu cotidiano enfadonho ou a esperança de um futuro que possa apagar a mediocridade das certezas e trazer a possibilidade de uma novidade qualquer, nesse mundo em que, com tantas informações, tantas tecnologias e ciência, torna-se cada vez mais difícil se deparar com o imprevisto, ou melhor, se deparar com o estranhamento diante de uma novidade?


A tudo nos fazemos apáticos, qualquer novo evento não dura em nossas mentes ou diálogos mais do que o tempo necessário para se tornar um espetáculo da desgraça humana ou para ser naturalizado e se tornar incapaz de provocar qualquer transformação efetiva na alma do homem, ou da mulher...


imagem retirada da internet: Einstein



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